“Lidar com o óbito de um feto ou de um recém-nascido é uma experiência em que a velocidade com que se vai da vida à morte pode dar a impressão de um delírio. Mesmo que o bebê não tenha nascido, nasceu ali uma mãe e um pai. E a sociedade, de forma geral, tende a subestimar essa dor, incentivando que esses pais superem rapidamente, ‘virem a página’ e não possam sequer viver o luto”. A fala é da pediatra neonatologista da Maternidade Odete Valadares (MOV), Gláucia Maria Moreira Galvão. Ela é responsável pela tradução brasileira de um simpósio sobre o tema, realizado em 2014, pela Associação Agapa, na França. O material resultou na recente publicação do livro Morte Perinatal.

Fundada em 1994, a Agapa surgiu por iniciativa de voluntários, cujo objetivo era prestar apoio psicológico a mulheres que vivenciavam o sofrimento de uma morte perinatal. A associação oferece recepção, escuta e apoio a pessoas que sofrem com o óbito de um bebê durante o nascimento ou no caso de uma gravidez que não pode ser concluída por qualquer motivo. Em 2014, após 20 anos de atuação, a associação promoveu um grande simpósio sobre o tema, que resultou em uma publicação destinada ao treinamento de equipes.

Luto saudável

Gláucia explica que é essencial que a família que perdeu um feto ou um recém-nascido sinta que, apesar do pouco tempo de existência, a criança deixou uma história. Esse seria um fator essencial para a elaboração de um luto saudável. “Esse bebê não usou o berço, não usou suas roupinhas. Pode ser que a gravidez tenha acabado tão no início que ninguém tenha visto crescer a barriga da mãe. Então, a impressão que se tem é que o bebê nunca existiu. E isso se torna uma dor muito profunda. Como os pais poderão realizar um luto saudável se a gente não der uma história para esse ser? Por isso é tão necessário que as equipes assistenciais possam acolher a mulher, entender sua dor e não subestimar seu sofrimento”, esclarece.

Créditos: Fernanda Moreira Pinto (ACS/Fhemig)

As equipes podem apoiar as famílias recriando suas recordações e esperanças perdidas. A escuta também é imprescindível nesse momento. “Como profissional de saúde, temos que saber ouvir e buscar acolher da melhor forma. Muitas vezes os pais são privados de ver e tocar o bebê, atitude que, apesar de bem-intencionada, pode ser uma chance perdida de enraizar o luto. Permitir o momento da despedida é fundamental”, diz.

A neonatologista realiza há pelo menos seis anos o registro fotográfico de famílias de bebês prematuros durante a vivência do Método Canguru - trabalho que, inclusive, foi premiado no ano passado em congresso internacional. Ela explica que a fotografia também pode auxiliar na superação de uma morte perinatal. “As imagens - quando feitas de forma respeitosa, voltadas ao registro de detalhes singelos e de delicadezas do momento dos pais com o bebê - tornam-se instrumento de reconstrução da história dessa criança, transformando-se em uma lembrança que irá auxiliar a cicatrizar feridas emocionais”.

Trabalho coletivo

O interesse de Gláucia pelo tema surgiu durante a realização de sua pesquisa de doutorado, que aborda o tempo de luto na morte neonatal. O que a médica não imaginava é que a iniciativa acabaria por envolver servidores de áreas diversas da Maternidade. “Comecei a trabalhar na parte teórica da pesquisa e a Alessandra Faria, bibliotecária do Núcleo de Ensino e Pesquisa (NEP), foi extremamente gentil e se ofereceu a buscar os artigos. O apoio da equipe começou já nesse momento. Ela identificou que um dos textos fazia parte de um simpósio ocorrido na França. Comecei a ler e fiquei encantada com o material. Então, pensei que não seria justo que isso ficasse só comigo”, explica.

Diante da importância do assunto e da necessidade de capacitar equipes para lidar a morte perinatal, Gláucia convidou o psicólogo da MOV, Rogério Fonseca, para integrar uma equipe de discussão dos textos do simpósio junto aos trabalhadores do Bloco Obstétrico e da UTI Neonatal. Foram realizados encontros mensais durante todo o segundo semestre de 2018, com uma média de 30 participantes por reunião. A iniciativa foi organizada e apoiada pela coordenadora do NEP, Érika Rabelo, e pela coordenadora da Neonatologia, Ângela Campos. “Promovíamos uma leitura de 15 minutos e mais 15 minutos de discussão junto aos profissionais. O objetivo era pensar sobre formas de diminuir o sofrimento da paciente e dos trabalhadores. Afinal, se a equipe não é capacitada para lidar com o luto, ela também está em sofrimento. Diante dos debates ricos que tivemos, enviei um e-mail para a Agapa, na França, explicando o que estava sendo realizado na MOV e pedi autorização para traduzir o simpósio para o português. A associação autorizou prontamente”, conta.

A formatação do material foi feita por outra servidora da Maternidade, a enfermeira Mônica das Graças de Azevedo. Gláucia ainda conseguiu outros profissionais fora da unidade que atuaram voluntariamente na revisão da tradução e na elaboração do projeto gráfico. A Editora Langage imprimiu 300 exemplares do livro, a preço de custo. Tudo isso para que a publicação saísse a um preço acessível. “Não está havendo nenhum tipo de ganho financeiro. Embora eu tenha traduzido, houve uma equipe envolvida no processo. Portanto, o trabalho não é só meu”, enfatiza.

Por Fernanda Moreira Pinto (ACS/Fhemig)