Para Elizabeth do Carmo, mãe de Vitória e Vitor, de 15 e 11 anos, a maternidade representou, desde o início, algo muito especial. “Quando Vitória nasceu, foi a melhor coisa que podia ter acontecido em minha vida”, conta. Moradora de Ribeirão das Neves (MG), onde é proprietária de uma lanchonete construída no fundo de sua casa, Beth, como é conhecida, dedica-se aos filhos com um carinho comum à maioria das mães, mas pontuado por um cuidado especial. Isso porque os irmãos têm doença falciforme, alteração genética que afeta o sangue e provoca diversas complicações no organismo, como crises de dor, infecções e anemia, o que exige atenção e acompanhamento constantes.

Foto: Rafaella Arruda

Vitória e Vitor foram identificados com a doença logo após o nascimento, por meio da triagem neonatal (teste do pezinho). Beth recorda que ao receber a confirmação do diagnóstico da filha, em julho de 2002, durante consulta na Fundação Hemominas, em Belo Horizonte, o sentimento foi de desespero: “Foi como se tivesse aberto um buraco no consultório pra me jogar ali dentro. Nunca tinha ouvido falar de doença falciforme, era totalmente desconhecido para mim”. Orientada a retornar à consulta depois de dois meses, e já tendo recebido os medicamentos necessários para a filha iniciar o controle da doença a partir do Programa de Triagem Neonatal de Minas Gerais (PTN-MG), Beth teve receio de que Vitória fosse rejeitada: “Não queria contar para ninguém, só para minha família”.

INFÂNCIA DE VITÓRIA

Durante os anos seguintes até o nascimento de Vitor, em agosto de 2006, Vitória enfrentou situações difíceis relacionadas à doença, como sequestro esplênico e hepático (acúmulo de sangue no baço e fígado, respectivamente, e aumento dos órgãos), crises de dor e pneumonia. “Ela ficou internada várias vezes”, conta a mãe.

Nesse período, Beth começou a estudar sobre a doença falciforme em apostilas e palestras realizadas pela Associação de Pessoas com Doença Falciforme e Talassemia de Minas Gerais (Dreminas). Ela também precisou lidar com a incompreensão de familiares sobre a situação da herança genética característica da doença.

NASCIMENTO DE VITOR

A gravidez do segundo filho foi uma situação inesperada para Beth. Ela desejava fazer laqueadura para não ter outra criança, mas foi aconselhada pelos médicos a continuar o uso de anticoncepcionais e aguardar Vitória completar cinco anos. Na troca da medicação, Beth engravidou novamente: “Quando soube, desesperei, chorava demais. Só de pensar ter outro filho, eu imaginava ele passando pela mesma situação da Vitória, o mesmo sofrimento”.

Assim como Vitória, Vitor foi diagnosticado com anemia falciforme, forma mais grave da doença falciforme, e iniciou o acompanhamento pelo PTN-MG, com consultas periódicas na Fundação Hemominas.

A mãe conta que, com pouco mais de um mês, o filho já precisou ser internado devido a problemas no coração: “Ele começou a internar todos os meses, sentia muita dor, nas juntas, na perna, inchava mesmo. Teve pneumonia, infecção urinária”. Aos quatro anos, após sete sequestros esplênicos, foi necessário retirar o baço. “O baço doía tanto que ele tinha medo dos outros meninos encostarem nele. Quando tirou, ele melhorou muito. Mas aí começaram outras crises de dor mais fortes”, recorda.

Em outra situação, a mãe lembra que levou Vitor para atendimento médico depois de ele se queixar de dor de cabeça: “Ele acabou tendo um derrame transitório, mas já estava no hospital”.

APRENDIZADO NA ESCOLA E UNIDADE DE SAÚDE

Atualmente, Vitória e Vitor cursam o primeiro ano do Ensino Médio e o quinto do Ensino Fundamental, respectivamente, em diferentes escolas de Ribeirão das Neves. “A escola é sempre um pouco complicada, os meninos são tímidos, mais fechados”, diz Beth. Segundo a mãe, quando os filhos precisam se ausentar para ir a alguma consulta ou estão internados, a escola se compromete a enviar o material das aulas para a casa ou hospital, ou mesmo a dar a eles o tempo necessário, depois do retorno, para eles ficarem em dia com as tarefas.

No início, não era assim. Beth conta que precisou do auxílio de médicos e pedagogos da Fundação Hemominas para orientar a escola sobre a doença falciforme e as necessidades dos alunos com a doença, como cautela na prática de exercícios físicos e ausência das aulas devido a internações ou consultas. “Todo ano eu levo a apostila da Hemominas para cada professor, para eles não falarem ‘eu não sabia’. Levo para os diretores e explico a úlcera de perna, por exemplo, como pode ficar se eles correrem, machucarem e não cuidar”, conta a mãe.

O atendimento na Unidade Básica de Saúde (UBS) Barcelona, onde Beth e os filhos se consultam, também mudou. Há alguns anos, Beth diz que pedia ajuda e ouvia dos profissionais que ela não estava sabendo cuidar dos filhos. Atualmente, depois da capacitação da equipe para a doença falciforme (leia também Unidade de Saúde é destaque na atenção à pessoa com doença falciforme), a situação melhorou bastante, reconhece: “Desde então, eles passam toda semana na minha casa para saber como os meninos estão. E começaram a ter mais agilidade com os exames, mandando separado para a secretaria, para ter mais prioridade”.

A UBS começou a realizar palestras para os funcionários, escolas, famílias e profissionais de outros postos de saúde. Em 2015, Beth foi convidada pela unidade para falar sobre a doença falciforme. “Fui à Dreminas, pedi apostilas e distribuímos para as pessoas. Fazíamos uma roda para compartilhar conhecimento e conheci outras famílias”, acrescenta.

EM FAMÍLIA

Tanto Vitor quanto Vitória fazem uso do medicamento hidroxiureia (Hydrea) para o tratamento da doença falciforme. No caso de Vitória, os resultados têm sido muito bons: quase um ano e meio sem internações. “Às vezes eu até esqueço que tenho (doença falciforme), porque tem muito tempo que não interno”, diz a jovem. Já para Vitor, a medicação teve um melhor efeito no início, mas depois as internações reiniciaram. “Desta última vez ele ficou internado mais de 15 dias e, um dia depois de sair, precisou retornar”, comenta a mãe.

Apesar das dificuldades, Beth reconhece a capacidade de superação da família. “Pelas coisas que meus filhos já passaram, e conversando com outras mães, eu penso que eles não tiveram uma sequela maior porque eu não espero ficar grave. Começou a sentir dor, eu dou o remédio, espero um pouco, uso compressa, hidrato e busco o médico”. A mãe diz que nunca falta às consultas e não se envergonha de falar da doença. “O ideal é não esconder. Meus filhos podem estar em um lugar, passar mal e eu não estar perto. Se as pessoas sabem, eles podem pedir socorro”, alerta.

“Ela cuida de mim e do Vitor muito bem”, diz Vitória. Quando não está na escola, a jovem conta que ajuda a mãe na lanchonete, gosta de estar com as amigas ou mexendo no celular. “Mas o que eu prefiro é dormir”, brinca. Já o irmão gosta de jogar futebol. “Vitor adora jogar bola, então comprei meião para ele usar até em cima para proteger”, pontua Beth.

“Já passamos por muita coisa. Já chorei de ver mãe saindo do consultório com a notícia da doença falciforme, mas não tem aquela vontade de aprender a respeito, acha que é difícil… Meu sonho é que todas as mães levassem a sério. Meus filhos são minha vida e não consigo me imaginar sem eles”, finaliza.

PTN-MG

Desde 1998, o exame de triagem neonatal para doença falciforme é realizado pelo Nupad para todo o estado de Minas Gerais pelo PTN-MG, sob a gestão da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG).

Além da doença falciforme, o Programa faz o diagnóstico de outras cinco doenças: hipotireoidismo congênitofenilcetonúriafibrose císticahiperplasia adrenal congênita e deficiência de biotinidase.

Por Assessoria NUPAD